Drogas do Sertão

Mestre em História (UFAM, 2015)
Graduado em História (Uninorte, 2012)

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As chamadas Drogas do Sertão poderiam muito bem ser denominadas de “as pepitas de ouro da Amazônia”. Este espaço foi, e ainda hoje permanece, como uma das principais regiões de extração de recursos naturais para o beneficiamento do mercado nacional e, especialmente, internacional. Nesse sentido, é importante não se limitar apenas a Amazônia Brasileira. Nos países da América Latina (que contém uma parcela do território amazônico), os projetos voltados para a extração de recurso naturais não renováveis são uma realidade alarmante. O principal problema é que os múltiplos atores amazônicos, dos quais muitos doaram a ferro e a “fogo santo” aquilo que o padre jesuíta Antônio Vieira teria chamado, ainda em meados do século XVII, de o “ouro da Amazônia” (o sangue que corria nas veias dos índios, e para citar John Hemmimg, o “Ouro Vermelho”), receberam (e ainda recebem) apenas migalhas deste fantástico empreendimento.

Podemos afirmar que após a fracassada tentativa de estabelecer um sistema de plantation, no contexto da instauração das Capitanias Hereditárias e da crise do comércio das especiarias indianas, os colonos voltaram-se para o que a Amazônia poderia lhes oferecer. De acordo com Francisco Jorge dos Santos, na busca por alternativas mercantilistas, os europeus encontraram abundante mão de obra indígena e inúmeros gêneros naturais para injetar no mercado europeu. Cacau selvagem, canela do mato, cravo, salsaparrilha, castanha-do-pará (hoje, Castanha do Brasil), piaçava, sementes oleaginosas (andiroba, copaíba, etc.), gengibre (mangarataia), puxuri, baunilha, tinta de urucum, anil, madeiras diversas. Cultivos de algodão, tabaco, café, açúcar e mandioca foram empreendidos. Os gêneros do reino animal poderiam muito bem ser considerados parte de uma biopirataria moderna em escalas jamais imaginadas. Eis a base mais promissora do comércio das drogas do sertão.

Santos também observou que, na Amazônia e mesmo em outras partes do vasto mundo colonial, a tão cobiçada mão de obra indígena era a mais valiosa droga dos sertões. Naquele contexto, a “nata” da mentalidade colonizadora considerava os sujeitos indígenas como a única especiaria capaz de produzir outras especiarias. Em meio aos dilemas de intelectuais europeus, os indígenas foram representados como feras selvagens. Sob o discurso da fé no poder do Estado Absolutista, a Igreja associou seus interesses espirituais ao ritual sacrifical de milhões de almas que resistiram ao empreendimento civilizatório (assim como das almas que a tal projeto se associaram). Das diferentes representações europeias sobre os indígenas, aquela que os caracterizava como produto era a que mais atendia aos interesses sagrados da Coroa e seu Padroado Régio. Patrícia Sampaio observou que para civilização e seus adjetivos o sinônimo mais afetuoso seria trabalho, assim como evangelizar era sinônimo de civilizar!

Teria a fé fracassado? Teria a civilização chegado? Bem que poderia ser alguma coisa para alguns homens modernos! Mas, para o Frei Bartolomé de Las Casas, o que restou nas colônias americanas foi um paraíso destruído.

O sertão era em si uma realidade simbólica. Diria Robert de Moraes que o sertão não seria um lugar, mas uma situação, uma condição atribuída a variados e diferentes lugares a partir de representações espaciais. O que dava sentido ao sertão era o não sertão (a civilização). A melhor definição era de que os sertões eram “lugares longínquos”, onde se poderia buscar muitas especiarias. Sertão era o lugar dos povos indígenas e de suas inesgotáveis reservas de braços para a modernização. Como lugar, o sertão era ocupado, não pelos cristãos, mas pelos silvícolas, pelos selvagens, habitantes dos imensos vales e rios, onde os europeus diziam não haver reis, leis e nem aquilo que representavam como Deus.

No primeiro século após o início do empreendimento colonial, já não se falava de pau-brasil ou guerras contra indígenas no litoral atlântico-sul. Isso não quer dizer que este espaço se tornou um vazio demográfico, mas é que no decorrer de poucas décadas tudo mudou. A ala mais intransigente do Humanismo não considerou aqueles indígenas como o centro do universo e nem cada um deles como passível de diversos. Apesar de Protágoras ter afirmado que o homem era a medida de todas as coisas, nos sertões era a “sujeição” ou a resistência que dimensionava o valor de um protagonista indígena.

Assim, os brancos vieram do além mar. Das veias indígenas levaram o pau-brasil, os peixes, as tartarugas, o sal, os fios de ouro, diamantes e muito mais... Trouxeram a esperança, o paraíso, a civilização, a tecnologia, o discurso sutil da serpente. Trouxeram a morte... Milhões de almas (doenças – gripe é doença que mata? – Talvez... só os selvagens!). Varíola, febre amarela, doenças sexualmente transmissíveis, a loucura, a Ciência e a Modernidade. Levaram bens mais valiosos. Algo foi tirado, modificado e dimensionado pelos fluxos migratórios do além mar.

Mas nem tudo foi tomado a força, roubado ou usurpado. Alianças foram formadas e pactos foram quebrados. Por causa da cobiça por “aliados” europeus, muitos indígenas empreenderam verdadeiros massacres a grupos étnicos milenares. Amigos e inimigos se foram por guerras que de justas nada tinham. Talvez até possamos considerar guerras justas, resgates, descimentos e aldeamentos de índios como base de uma economia fundamentada na busca por verdadeiros caçadores de almas para os currais humanos. Tudo aconteceu, também, graças às inimizades indígenas, e este ponto evidencia que não havia diferença entre homens e selvagens. Todos eram humanos, não havia docilidade nem animalidade (ou, talvez, teria?).

É bem verdade, por outro lado, que muitos indígenas e europeus queriam mesmo era sobreviver. O empreendimento colonial não fazia acepção de pessoas. A lógica colonizadora cooptava indígenas para a captura de outros indígenas e trazia da Europa criminosos da mais baixa categoria para administrar a colonização. Muitos indígenas se associaram aos milhares com europeus. Aqueles colonos, e mesmo indígenas, que tivessem em suas mãos espécimes do bem mais valioso da Amazônia conseguiriam fazer lucro certo com tudo que encontrassem pelos meandros “inesgotáveis” do imenso vale amazônico.

Dizem por aí que as coisas mudaram. Mas nem tudo é tão simples quanto parece...

Bibliografia:

COMISSIÓN AMAZÓNICA DE DESARROLLO Y MEDIO AMBIENTE. In. La Amazonia sin mitos (p. 15-61). Disponível em: http://otca.info/portal/admin/_upload/publicacoes/SPT-TCA-ECU-SN-AMAZONIA.pdf; Acesso em: 17 out. 2017.

HEMMING, John; DE MOURA, Carlos EugÊnio Marcondes. Ouro Vermelho: A Conquista dos Índios Brasileiros Vol. 27. EdUSP, 2007.

LAS CASAS, Frei Bartolomé de. O paraíso destruído: brevíssima relação da destruição das Índias. Trad. Heraldo Barbuy. Porto Alegre: L&PM, 2001.

MORAES, Antonio Carlos Robert. O Sertão. Um “outro” geográfico. Terra Brasilis (Nova Série). Revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica, n. 4-5, 2003.

NEVES, Luiz Felipe Baêta. Transcendência, poder e cotidiano: as cartas de missionário do padre Antônio Vieira. EdUerj, 2004.

SAMPAIO, Patrícia Melo. Desigualdades Étnicas e Legislação Colonial, C.1798 – C.1820. In Amazônia em Cadernos – Revista do Museu Amazônico nº 6, jan./dez., 2000. Manaus, editora da Universidade do Amazonas (atualmente Ufam – Edua), 2001.

SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina. Editora da Universidade do Amazonas, 2002.

Arquivado em: Brasil Colônia
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